Uma das principais testemunhas de acusação no processo em que o ex-presidente Jair Bolsonaro é réu por tentativa de golpe de Estado, o ex-comandante do Exército Marco Antônio Freire Gomes confirmou ontem, em audiência no Supremo Tribunal Federal (STF), ter participado de reuniões no Palácio da Alvorada para discutir um documento que previa a instauração de estado de sítio, de defesa ou uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no país após as eleições de 2022. Aos ministros da Corte, o militar afirmou ter sido chamado pelo ex-chefe do Executivo para discutir o texto, que chamou de “estudo”, ao lado dos demais comandantes das Forças Armadas.
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O general, no entanto, tentou desvincular as alternativas apresentadas por Bolsonaro a uma trama golpista. Ele disse que os instrumentos listados no documento estão previstos na Constituição e que, por isso, não lhe causou “nenhuma espécie” naquele momento. A versão apresentada foi questionada pelo ministro Alexandre de Moraes, relator da ação, que viu divergências em relação ao que o militar havia dito à Polícia Federal em março do ano passado.
Na ocasião, Freire Gomes relatou a participação de Bolsonaro em discussões de cunho golpista e enfatizou que “sempre deixou evidenciado ao então Presidente da República que o Exército não participaria na implementação desses institutos jurídicos visando reverter o processo eleitoral”. Questionado por Moraes se confirmava o que havia relatado à PF, o general disse que sim.
O general foi ouvido na condição de testemunha de acusação do primeiro grupo de réus, do chamado “núcleo crucial”. Seu depoimento era um dos mais esperados pelos envolvidos no processo, após seu relato à PF ter sido considerado peça-chave na denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) ao confirmar as discussões de uma trama golpista no fim do governo anterior.
Além de Moraes, que conduziu a audiência, outros três ministros da Primeira Turma acompanharam os depoimentos, que ocorreram de forma virtual: Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, e Luiz Fux. Bolsonaro também participou via videoconferência.
Em um trecho da audiência, Freire Gomes contrariou depoimento do ex-comandante da Aeronáutica Carlos Almeida Baptista Junior. O brigadeiro relatou à PF no ano passado que o ex-chefe do Exército teria dito a Bolsonaro que teria que o prender caso levasse os planos golpistas adiante. Ontem, o general afirmou que não deu “voz de prisão” ao então presidente:
— Não aconteceu isso de forma alguma. Acho que houve uma má interpretação.
Ao ser questionado, Freire Gomes confirmou ter sido chamado pelo ex-presidente para discutir o documento que previa a instauração de estado de sítio, de defesa ou uma GLO, mas minimizou o conteúdo ao dizer que as medidas previstas estão contidas na Constituição. O argumento é o mesmo utilizado pela defesa de Bolsonaro quando trata do assunto.
— O presidente apresentou apenas como informação e nos disse que era para que nós soubéssemos que estava desenvolvendo um estudo sobre o assunto. Não nos demandou qualquer opinião. (…) Ele apresentou esse apanhado de considerandos, todos eles embasados em aspectos jurídicos, dentro da Constituição. Por isso não nos causou nenhuma espécie, porque não havia nada que chamasse atenção, algo diferente disso.
Freire Gomes, porém, disse ter alertado Bolsonaro em uma das reuniões que ele poderia ter “um problema sério” e ser “implicado juridicamente” caso levasse os planos adiante. Na ocasião, disse que seria necessário apoio tanto interno quanto internacional.
— Eu alertei ao senhor presidente, com toda a educação, que as medidas que eventualmente ele quisesse tomar, ele deveria atentar para os diversos aspectos, desde os apoios, sejam nacionais ou internacionalmente, desde a questão do próprio Congresso. (Também alertei) da parte jurídica, que tudo isso poderia desencadear numa situação em que ele, se não tivesse esses apoios e não jogasse efetivamente o processo dentro dos aspectos eminentemente jurídicos, iria ter um problema sério. Podia inclusive ser implicado juridicamente — disse Freire Gomes.
Na audiência no STF, o ex-comandante do Exército também confirmou que na última versão do documento apresentado a ele havia a determinação de prisão de autoridades, e que “acha” que a ordem era contra Moraes:
— No último contato que nós tivemos com esse documento, que nós tomamos conhecimento, fazia referência, sim, de alguma coisa com relação à prisão de autoridade. Acho que, no caso, era o ministro Alexandre de Moraes.
O militar foi advertido por Moraes após atenuar o que havia dito sobre a participação do ex-comandante da Marinha Almir Garnier nas reuniões no Alvorada. À PF, Freire Gomes relatou que o almirante se colocou “à disposição do presidente” em relação aos planos golpistas, enquanto ele e Baptista Júnior se manifestaram contra.
Ontem, Freire Gomes afirmou que não viu “conluio” na postura de Garnier:
— Acho que ele também foi surpreendido por aquilo tudo ali. Ele apenas demonstrou o respeito ao comandante em chefe das Forças Armadas. Não interpretei como qualquer tipo de conluio.
Moraes o interrompeu, dizendo que a versão era diferente do que ele disse à PF, alertando-o que uma testemunha não pode mentir.
— A testemunha não pode omitir o que sabe. Eu vou dar uma chance à testemunha de falar a verdade. Se mentiu na polícia, tem que dizer que mentiu na polícia — afirmou o ministro, acrescentando: — Comandante, ou o senhor falseou a verdade na polícia ou está falseando a verdade aqui.
Freire Gomes, então, disse que Garnier afirmou a Bolsonaro que estaria com ele, mas que não poderia “inferir” o que ele quis dizer com isso:
— O almirante Garnier tomou essa postura de ficar com o presidente. Apenas a diferença, ministro Alexandre, é que eu não posso inferir o que ele quis dizer com “estar com o presidente”. Foi isso que eu quis dizer. Eu não omiti o dado. Eu sei plenamente o que eu falei e reafirmo, ele disse que estava com o presidente. Agora, a intenção do que ele quis dizer com isso não me cabe.