Como a morte de todo artista importante, a de Sebastião Salgado (1945-2025) provocou e seguirá provocando uma pequena avalanche de necrológios, depoimentos de lembranças pessoais, avaliações do encontros com outros artistas, muitas afirmações taxativas e algumas dúvidas, que vão desde a dimensão inovadora de sua linguagem; os significados de sua opção pelo branco e preto, até a inevitável questão colocada diante de toda obra abertamente militante: qual será ao fim e ao cabo a sua capacidade de transformar a realidade que denuncia?
Neste tempos das mal chamadas redes sociais podemos prever que a reflexão, ou a simples necessidade de opinar, evoluirá de uma enorme intensidade de resgates nos primeiros dias para um discreto segundo plano face à próxima efeméride, no incansável ciclo dos 15 minutos de fama, à espera talvez de alguma grande retrospectiva e assim por diante.
Mas a par disso, paira a velha e fundamental questão da arte, aquela que pergunta pela permanência do impacto da obra. E se é verdade que aqui é o tempo o protagonista da resposta final, também o é que um olhar para as tradições ou série históricas em que a obra se insere é uma baliza importante para a leitura interna da própria obra e para a identificação da forma em que ele se localiza nessa série, nos diálogos que estabelece, nas marcas que quer deixar.
Salgado traz a chama, e para muitos é o apogeu de gerações – ou de uma tradição- de fotógrafos humanistas e militantes. Isto é, de fotógrafos que acreditaram que o qualidade técnica e estética de seu trabalho não estaria completa sem uma posição de testemunho – e muitas vezes de denúncia – da tragédia das relações entre os homens e o progresso, entre os homens e o esgotamento da natureza. Inescapável, para compreender essa tradição específica da fotografia, lembrar que esta é, antecedendo o cinema, a expressão artística por excelência da modernidade, tendo nascido com ela e para ela.
Tradições são sempre resultados de trabalhos coletivo, talvez menos marcados pela ideia de “influência” do que de interlocução e aprendizado, de uma forma de conversa em que cada trabalho rearranja a leitura e a compreensão dos trabalhos que o antecederam e ao mesmo tempo abre possibilidades para os próximos lances, como num jogo de sinuca em que cada tacada redefine a configuração da mesa e renova a pergunta sobre a possibilidade dos próximos lances.
Compreendida dessa forma, parece aceitável afirmar que essa nova tradição moderna, a da fotografia humanística, crítica e militante, tomou forma no início do século XX com Lewis Hine (1874-1941), fotógrafo e sociólogo estadunidense, hoje eventualmente mais conhecido, entre o público geral, pela impactante série dos operários trabalhando na construção do Empire State Building, nos anos 30.
Mas foram seus trabalhos anteriores, sobretudo o registro das condições do trabalho fabril na América pré-depressão e muito especialmente o registro/denuncia/militância pela abolição do trabalho infantil que podemos indicar como momento fundacional dessa tradição específica. Por ocasião do leilão de importante coleção de fotografias e fotolivros de Hine por uma galeria de Nova York em 2018, The Guardian as qualificou em manchete como “as fotos que mudaram a América”, destacando o impacto desse extraordinário registro do trabalho infantil, desde os meninos quebradores de carvão na Pensilvania às meninas nas plantações e fábricas de algodão da Carolina, que resultaria, anos depois, na legislação de proteção ao trabalho infantil.
De impacto imagético e social semelhante, podemos incluir nessa série militante o fotografo estadunidense W. Eugene Smith (1918-1978), que trabalhou como correspondente na II Guerra, tendo sido ferido na batalha de Okinawa e ficou conhecido mundialmente a partir de seus ensaios na revista Life, nos anos 40 e 50, caracterizados, como reconheceu a Enciclopédia Britânica, por “um forte senso de empatia e consciência social”.
Entre 1971 e 1974, Smith, junto com sua esposa Ayleen, viveu no Japão para documentar o impacto numa pequena comunidade de pescadores do lançamento de mercúrio nas águas da bacia de Minamata, pela fábrica da Chisso Corporation, que produzia material de base para a indústria de plásticos. Seu trabalho trouxe á luz os efeitos devastadores da contaminação no sistema nervoso, com prejuízos para os sentidos, convulsões e danos cerebrais, incluindo deformação em fetos. A foto Tomoko e a mãe no banho, de 1971, mostra uma mãe embalando a filha gravemente deformada num ofurô e teve repercussão internacional.
Depois disso Smith foi ferido por seguranças da Chisso e capangas do Sindicato local, tendo sua visão gravemente afetada. Mas o livro Minamata, Words and Photographs, publicado em 1975 chamou a atenção do mundo inteiro para a questão do mercúrio e definiu a expressão “doença de Minamata.”

Divulgação/Carlos Ferreira Martins
Salgado tinha 30 anos quando o livro é publicado e certamente isso reforçou a convicção do economista que havia abandonado seu trabalho no início dos ‘70 para dedicar-se à fotografia, inicialmente como fotojornalista. É bastante sabido que ganha notoriedade quando, em 1981 fotografa, em um golpe da fortuna, mas também da virtú, um atentado contra Ronald Reagan.
A partir daí afasta-se do jornalismo para articular trabalhos de maior fôlego, ensaios que resultaram em livros e mostras memoráveis, que tem sido e continuarão exaustivamente citados e recuperados. Uma marca fundamental de seu trabalho está em ter sabido combinar seu talento inconteste com pautas relevantes. Mas também é importante destacar a dimensão logística de em viagens bem planejadas e organizadas, em que tem papel decisivo sua companheira Lélia Wanick, arquiteta, urbanista e ambientalista. Alguns desses trabalhos respondem a fatos prementes, como o registro da fome na África ou a guerra no Kuwait. Em outros, onde a dimensão logística é ainda mais fundamental, o foco está nas condições de trabalhos ancestrais, arcaicos, como mineração de enxofre.
A possibilidade de viabilizar esses ensaios, tanto no planejamento quanto no financiamento, ao tratar sem concessões de temáticas tantas vezes indigestas, fatos que a mídia preferiria omitir e que as empresas gostariam de ocultar, amparado por sua companheira, dá a medida da dimensão da obra que ele nos deixa.
Os registros de Serra Pelada (1999) marcam no imaginário coletivo a dimensão épica e trágica desse embate homem/natureza e homem/homem em que o ser humano vai da insignificância das imagem das miríades de garimpeiros arranhando as encostas ao heroísmo desespero do peão que enfrenta e agarra o fuzil do militar que o reprime, em rigoroso branco e preto.
Êxodos (2000), Retratos de Crianças do Êxodo (2000), Gênesis (2013) ou o magnifico trabalho de 7 anos sobre a Amazónia, apresentado no SESC Pompéia em 2022 mostram suas pautas, que resultam em imagens épicas, a combinar a inteligência narrativa, a sofisticação estética e a dramaticidade dos temas. Sem se intimidar diante das situações extremas e sempre trazendo grandeza aos seus retratados.
Salgado não é refém de seus assuntos nem tampouco os desrespeita, construindo e nos legando um imaginário vai da gentileza da vida silvestre à brutalidade extrema da inanição em um deslumbrante preto e branco.
Quiseram as moiras que Salgado se fosse no mesmo momento em que o cerimonial do Itamarati decidi escolher uma foto sua como presente de Lula ao presidente de Angola em viagem oficial país. E que, como lembrou o embaixador Paulo Sergio Pinheiro a propósito da viagem que fizeram para registrar as imagem do Massacre de Eldorado dos Carajás, “Sebastião Salgado desaparece em um momento em que nosso país ainda está assombrado pela ignorância e pela insensibilidade da extrema-direita — contra a qual seu olhar humanista, aqui e no mundo, sempre revelou os sem poder, os sem-terra, os vulneráveis.”
E cabe lembrar que não é apenas o nosso país que está assombrado. Talvez a mais dura expressão disso esteja no fato de que o planeta inteiro assiste diariamente as imagens não profissionais do mais abjeto e brutal genocídio deste século, sem que os poderosos se sensibilizem ou o drama de Gaza encontre seu narrador.
(*) Antonio Saggese é formado em Arquitetura pela FAUUSP e fotógrafo profissional.
(*) Carlos Ferreira Martins é professor titular aposentado do IAU USP São Carlos.