Mulher reza sobre Bíblia
Foto: Getty Images / BBC News Brasil
A desaceleração no crescimento do número de evangélicos no Brasil, revelada no Censo de Religião do IBGE nesta sexta-feira (06/06), deve adiar em 17 anos a substituição do catolicismo como a principal religião do país, projeta o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves.
Mantida a nova taxa de crescimento evangélico – de 5,2 pontos percentuais entre o Censo de 2010 e o de 2022 – e a de declínio católico – 8,4 pontos percentuais -, a transição religiosa do Brasil deve ocorrer em 2049, calcula Eustáquio.
Antes dos dados do Censo 2022, o demógrafo calculava que isso aconteceria em 2032.
“Pela minha projeção anterior, a Igreja Católica iria perder de 7 a 1, de goleada. E acabou que a Igreja Católica perdeu por 1 a 0”, compara o pesquisador aposentado do IBGE.
Conforme o IBGE, 26,9% dos brasileiros ou 47,4 milhões se declararam evangélicos em 2022, ante 21,7% em 2010.
O avanço de 5,2 pontos percentuais, abaixo da alta de 6,5 pontos registrada entre os censos de 2000 e 2010, é a primeira desaceleração na tendência de crescimento desde os anos 1960.
Eustáquio avalia que a diferença acentuada entre as suas duas projeções acontece porque o Brasil passou 12 anos sem ter dados do IBGE sobre religião – e explica que o que faz é uma projeção, não uma previsão.
Para a projeção, o professor calculou uma taxa anual de crescimento evangélico e recuo católico entre 2010 e 2022, anos dos dois censos. Ou seja, considera que essas taxas seguirão no mesmo patamar nos próximos anos.
“Ninguém sabe o que vai acontecer no futuro. Pode mudar tudo. Agora você tem de fazer alguma hipótese, então acho que é uma hipótese razoável. Se vamos supor, vamos supor que essa tendência de 2010 a 2022 se mantenha”, explica.
O novo Censo mostra que os católicos são 56,7% da população, mas 8,4 pontos percentuais a menos do que no Censo de 2010.
Só que entre 2000 e 2010 essa queda do catolicismo tinha sido mais expressiva: 9 pontos percentuais.
O que explica o freio evangélico
Os estudiosos de religião ainda vão se debruçar sobre os dados, mas essa perda de força no crescimento evangélico já vinha sendo sentida por alguns pesquisadores.
A antropóloga Jacqueline Teixeira, estudiosa da área de religião e professora na USP, avalia que há um crescimento de movimentos de “contra-conduta evangélica”, em aversão a um evangelicalismo muito voltado para igreja e para o culto.
“Isso, consequentemente, traz outras possibilidades, até socioculturais, de pertencimento religioso e mesmo de leitura dos cristianismos”, diz.
Para ela, essa redução do vínculo com igrejas se dá por fatores como as falas de lideranças religiosas no debate público e a própria democratização do acesso à internet, que permite novas relações com a fé.
“Vários desses elementos têm trazido uma dificuldade de declarar pertencimento [à igreja] por parte de algumas pessoas, e isso tem gerado, consequentemente, movimentos de distanciamento em relação ao pertencimento religioso evangélico. A gente não via isso dez anos ou 15 anos atrás”, diz.
É um fenômeno que tem sido chamado de “desigrejados”. Isso pode fazer, por exemplo, que uma pessoa se declare apenas “cristã” no Censo. Assim, ela acabaria entrando na categoria de “outras religiosidades”, que passou de 2,7% para 4% da população.
O demógrafo José Eustáquio compartilha da visão de que há um crescimento do “evangélico não praticante”.
“Tem uma série de denúncias [contra igrejas evangélicas], de práticas de charlatanismo, de pedir dinheiro. Parece que chegou num limite, e as pessoas cansaram desse negócio”, avalia.
O pesquisador também considera que a ligação evangélica com a política, especialmente com a pauta da direita radical no Brasil nos últimos anos, pode ter afastado alguns fiéis.
“Houve uma radicalização muito grande. Por um lado, ela mobiliza muita gente e na hora de votar consegue eleger muita gente, mas também afasta muitos setores moderados.”
Mas Eustáquio também considera que fatores técnicos do próprio Censo podem ter contribuído para a nova taxa de crescimento mais tímida.
“O Censo 2022 foi muito problemático”, diz o demógrafo, citando os atrasos devido à pandemia (o Censo deveria ter sido realizado em 2020) e a falta de recursos durante o governo Bolsonaro.
O próprio IBGE chegou a rever seus dados sobre o número de habitantes do Brasil. Pelo Censo 2022, o país tem 203 milhões de pessoas. Um ano depois, porém, uma nova projeção indicou 210,8 milhões, uma diferença de quase 8 milhões de pessoas.
“Obviamente, essas pessoas não foram entrevistadas. Então é preciso fazer estudos melhores para saber se essa falha de cobertura afetou esses números”, explica.
Mesmo com “freio”, os evangélicos seguem avançando, com mais força entre os mais jovens.

Mapa estatístico da distribuição populacional do Censo de Religião 2022 do IBGE
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Os católicos estancam a sangria
A parcela de católicos no Brasil recuou de 65% em 2010 para 56,7% em 2022, somando 100,2 milhões e dando continuidade à tendência de perda de força da religião no país.
Até a década de 1970, mais de 90% dos brasileiros se declaravam católicos.
Mas a perda de fiéis pela Igreja Católica desacelerou, segundo o Censo de 2022.
Ela atingiu seu auge entre os censos de 2000 e 2010, quando a parcela de católicos foi de 74,1% para 65,1%, numa variação de 9 pontos percentuais — a maior já registrada até então.
Entre 2010 e 2022, a variação foi de 8,4 pontos.
“O católico continua perdendo, só que continua perdendo no ritmo mais lento até então. Nesse sentido, é uma vitória da Igreja Católica, porque estancou aquela sangria. Mostra uma reação”, diz Eustáquio.
Uma das hipóteses para esse cenário, avalia o demógrafo, é que a gestão do papa Francisco ajudou a amenizar o desgaste da Igreja Católica. “Mas isso precisa ser melhor avaliado em pesquisas”, ressalta.
Na projeção anterior de Eustáquio, os católicos já seriam menos de 50% da população brasileira neste Censo. Algo que não aconteceu.
Para a antropóloga Jacqueline Teixeira, novos movimentos dentro do catolicismo podem ter contribuído. Um deles é a renovação carismática, movimento que busca uma vivência mais intensa e profunda da fé cristã.
“De alguma maneira, eles estão dando um pouco essa sensação de que o catolicismo se torna novamente um caminho factível”, avalia Teixeira.

A Igreja Católica continua a perder fiéis, porém o ritmo do encolhimento diminuiu, segundo o Censo 2022
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‘Tenho fé, mas não tenho religião’
O número de brasileiros que se declaram sem religião cresceu, de 7,9% para 9,3%, somando 3,6 milhões. Neste grupo, estão incluídos agnósticos e ateus, mas também brasileiros que têm a sua fé, mas não seguem nenhuma religião específica.
É o caso da estudante pernambucana Juliana, 26 anos, moradora de Juazeiro, na Bahia.
De uma família nordestina que tem intercambiado credos nas últimas décadas entre catolicismo e protestantismo, ela se encontrou religiosamente num lugar do meio, de experimentação.
“Me abrir para experimentar e testar tantas coisas me faz não acreditar 100% em nada, e duvidar muito sobre várias questões”, diz Juliana, que se considera agnóstica. Ela não quis ter sua identidade revelada para evitar conflitos familiares.
Juliana foi criada cristã, mesmo que os pais não seguissem uma religião específica. Frequentava escolas dominicais evangélicas com colegas de rua na infância e chegou a ser batizada católica.
Aos 14 anos, todo o núcleo familiar se converteu para a Assembleia de Deus, seguindo uma rotina rígida ligada à religião. Durante 6 anos, a estudante se dizia evangélica.
Mas uma série de fatores fez a jovem se distanciar da igreja, como proibições a namoros ou ao uso de peças de roupa que não fossem saias longas. Somou-se a isso a entrada na universidade, que incluiu o contato com pessoas que pensavam diferente, e a politização do púlpito do templo nas eleições de 2018, quando Bolsonaro se elegeu presidente.

Número de evangélicos continua aumentando no Brasil, apesar do ritmo de crescimento ter diminuído, segundo o Censo 2022
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“Foi quando eu percebi que eu poderia sim viver uma vida que fosse longe da igreja ou que não fosse dentro da igreja 24 horas por dia”, diz Juliana.
Aos 20 anos, a jovem rompeu o vínculo com a Assembleia de Deus. A estudante começou a ler sobre budismo, fazer meditação, ter contato com outras igrejas evangélicas mais liberais, se aproximar novamente da Igreja Católica e até frequentar terreiro de umbanda e Jurema sagrada (religião de matriz africana, também conhecida como Catimbó).
“Eu acredito que existe alguma coisa que eu não sei direito ainda”, conta Juliana.
“Mas não sou capaz de acreditar em um Deus que condena as pessoas ao inferno por não ser de determinada igreja, não usar saia e usar batom, por serem quem são ou por amarem quem elas amam. Não consigo aceitar a visão que toda a verdade sobre a humanidade estaria numa religião europeia”, completa.
O IBGE não divulgou dados desagregados para o grupo dos “sem religião”, por tratar-se de uma divulgação preliminar de dados. Segundo os técnicos do instituto, ainda está sendo avaliado se será possível divulgar esses dados, devido a problemas com a qualidade dos dados coletados.
Mas sabe-se que ateus e agnósticos costumam ser minoria dentro deste grupo — no Censo de 2010, por exemplo, ateus eram 4% dos sem religião e agnósticos, 0,8%.
Gráficos por Carla Rosch e Caroline Souza, da Equipe de Jornalismo Visual da BBC Brasil