A palavra dos delatores é tratada com suspeição pela legislação brasileira. Nada do que o tenente-coronel Mauro Cid disse em seu interrogatório no Supremo Tribunal Federal pode ser usado para condenar alguém no processo da trama golpista se não houver provas que corroborem suas declarações e tenham sido obtidas pelos investigadores de forma independente dele.
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É assim porque, ao reconhecer sua participação em crimes e colaborar, o objetivo principal do delator é alcançar uma pena mais branda no final do processo e outros benefícios negociados com a Justiça. O delator tem obrigação de dizer a verdade e pode ser punido se mentir ou omitir algo que saiba, mas a expectativa dos benefícios da colaboração pode empurrá-lo na direção errada.
A palavra de Cid tem peso por causa de sua proximidade com o ex-presidente Jair Bolsonaro, de quem foi ajudante de ordens, e sua presença em vários episódios relatados na denúncia da Procuradoria-Geral da República. Mas a legitimidade da decisão que o STF tomar ao final do processo vai depender mais das provas que forem consideradas nas sentenças do que do seu depoimento.
Em certo momento do interrogatório de ontem, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, citou uma mensagem enviada por Cid a um colega de farda em dezembro de 2022, em que tratava de um encontro que o general Estevam Cals Theophilo Gaspar teve com Bolsonaro no Palácio da Alvorada. “Ele quer fazer”, escreveu o coronel. “Desde que o Pr assine.”
Gonet pediu que explicasse o que isso significava. Cid afirmou que teve uma conversa informal com o general antes de ele deixar o palácio, e que nesse breve diálogo Theophilo lhe disse que cumpriria as ordens do presidente se ele assinasse uma medida de exceção como as que estavam em discussão no governo. “Se assinasse, o Exército iria cumprir”, resumiu o coronel.
O depoimento de Cid provavelmente será usado pela Procuradoria para reforçar as provas apresentadas contra o general Theophilo, réu em outra das ações em que o processo foi dividido. A mensagem foi encontrada pela Polícia Federal num dos telefones de Cid antes que ele virasse delator, portanto de forma independente dele. Sua palavra nesse caso pode valer muito.
Não foi o que se viu quando o coronel foi questionado sobre uma reunião realizada por membros das Forças Especiais do Exército em novembro de 2022, da qual ele participou. Segundo a Procuradoria, os golpistas teriam se articulado nesse encontro para pressionar os chefes militares a aderir ao golpe e eliminar resistências identificadas na cúpula das Forças Armadas.
Cid descreveu a reunião como um encontro de amigos sem motivação política e chegou a compará-la a uma conversa de bar num dos depoimentos prestados à Polícia Federal como parte de sua colaboração. Ele insistiu nessa caracterização durante o interrogatório desta segunda-feira, ressaltando que nenhuma ação foi planejada pelos militares nessa ocasião.
Gonet lhe perguntou então sobre as provas que fazem parte do processo. Em mensagens trocadas durante o encontro e descobertas pela PF em seus aparelhos celulares, dois participantes compartilharam anotações sobre os temas discutidos ali, que incluíam a criação de um gabinete de crise na estrutura do Exército e a necessidade de pressionar os comandantes que se opunham aos golpistas. Cid pareceu desconcertado: “A mensagem não foi comigo”.
Quando Gonet lhe deu outra chance, ele tentou uma saída. “Cada um falava uma coisa e dava uma opinião”, explicou. “Se ele compilou o que foi ouvindo, não foi nada oficial.” Ao minimizar a importância da reunião, pode ser que Cid queira aliviar a barra para si próprio e seus colegas. Quando chegar a hora da sentença, é provável que as provas nos autos tornem o esforço vão.
Os advogados dos réus foram hábeis ao explorar lacunas e contradições do coronel. José Luís Oliveira Lima, defensor do general Walter Braga Netto, perguntou a Cid por que demorou mais de um ano para contar à polícia que recebera das mãos dele uma sacola com dinheiro para os golpistas. Cid disse que não vira nada de suspeito no lance, e só percebera sua relevância ao ser questionado pelos investigadores sobre as mensagens em que esse assunto foi discutido.
As mensagens mostram que, dois dias após se reunir com Braga Netto, um coronel mandou a Cid uma estimativa de recursos para que ele encaminhasse o pedido. As mensagens não citam o general, mas Cid afirmou que ele foi pessoalmente ao Palácio da Alvorada para lhe entregar o dinheiro. Ainda não apareceu no processo uma prova de que isso de fato tenha ocorrido assim.