Niède Guidon era, sobretudo, guerreira. Nunca parou de lutar, muitas vezes sozinha, assim como a mulher milenar enterrada com as armas e cujo corpo ela descobriu no início deste século em sua amada Serra da Capivara. Brigou para defender a arqueologia, o meio ambiente, e superar as injustiças sociais. O Brasil e a Humanidade devem a ela a descoberta e a preservação de um patrimônio cultural e natural único.
- Obituário: Morre a arqueóloga Niède Guidon
Quem teve o privilégio de conviver com ela, reconhecia que a personalidade forte e o jeito de ser que mimetizava o do sertão, podiam não ser fáceis. Niède era braba. Mas ela sabia quem sem coragem e couraça não há quem enfrente os espinhos da Caatinga, as durezas da vida acadêmica, os perigos de defender o meio ambiente, a violência do preconceito e do machismo.
A mesma coragem que a levava morro acima para escavar um sítio arqueológico com pinos nos joelhos quando já passara dos 80 anos, a impulsionou para fazer o patrimônio da Serra da Capivara conhecido mundo afora. E tentou protegê-lo com todas as suas forças.
Há décadas a unidade de conservação criada graças a seus esforços já contava com placas trilíngues, projetos de visitação e modelo de gestão de um tipo que os demais parques brasileiros jamais chegaram a ter.
Polêmica na interpretação de alguns de seus achados, Niède nunca se deu por vencida. E se fez respeitada. Deu voz e emprego a mulheres numa sociedade onde o machismo imperava. Atraiu para São Raimundo Nonato, no paupérrimo sertão do Piauí, onde água segue sendo luxo, turistas e cientistas que turbinaram a economia da cidade.
No início dos anos 2000, quando vinho francês de boa qualidade era escasso até mesmo em lojas de Rio e São Paulo, o mercadinho de São Raimundo tinha rótulos de primeira linha. Era o “vinho da doutora”, comprado pelos visitantes do parque e indicado para o dono do mercado pela própria Niède.
Ela descobriu sítios arqueológicos, com pinturas rupestres que desafiam a imaginação e a paisagem. Desenhos de capivaras e botos sobrevivem nas paredes rochosas do sertão e revelam histórias de outros tempos.
Niède lutou para proteger esse patrimônio, a serra de beleza natural extraordinária, seus bichos, suas plantas e sua gente. Parte a mulher de carne e osso, fica a figura da guerreira para a posteridade. O país lhe deve o tributo de não deixar que esse patrimônio seja dilapidado e desprotegido.