Após a Câmara aprovar uma norma que suspendia a íntegra do processo da trama golpista contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) e tentava abrir brecha para beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro, a Primeira Turma do Supremo Tribunal (STF) formou maioria na sexta-feira para limitar a decisão tomada pelos parlamentares. Os ministros que já se manifestaram, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino e Luiz Fux, enviaram recados em seus votos, argumentando que a decisão da Casa vai além do autorizado pela Constituição e busca uma “ingerência” sobre o Judiciário.
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Caso a determinação da Corte seja confirmada, Ramagem seguirá respondendo por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do estado democrático de direito e organização criminosa armada. A análise seguirá no plenário virtual até terça-feira. Até lá, os posicionamentos podem mudar ou o caso ser redirecionado ao plenário físico, se um magistrado pedir destaque. Até o fechamento da edição, apenas a ministra Cármen Lúcia não havia votado.
‘Constituição é clara’
Já as acusações de dano qualificado pela violência e grave ameaça contra patrimônio da União; e deterioração de patrimônio tombado serão interrompidas até o fim do mandato de Ramagem. O texto constitucional permite a suspensão de crimes que tenham sido cometidos por parlamentares depois da diplomação, o que no caso dele ocorreu em dezembro de 2022. Segundo o processo, essas duas imputações dizem respeito aos atos de 8 de janeiro de 2023, ou seja, depois de o mandato de Ramagem ter sido oficializado. Não haverá nenhuma mudança na situação dos outros sete réus da ação, incluindo Bolsonaro.
“Os requisitos do caráter personalíssimo (imunidade aplicável somente ao parlamentar) e temporal (crimes praticados após a diplomação), previstos no texto constitucional, são claros e expressos, no sentido da impossibilidade de aplicação dessa imunidade a corréus não parlamentares e a infrações penais praticadas antes da diplomação”, afirmou Moraes.
Mais do que buscar na prática o trancamento de todo o processo e a extensão do benefício a outros réus, já que a Constituição deixa explícito os limites, os deputados buscaram gerar um fato político e passar uma mensagem de “independência” e defesa das prerrogativas parlamentares. A aliados, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), manifestou incômodo com um ofício enviado antes da votação por Zanin, presidente da 1ª Turma, informando que só seria permitido interromper as duas acusações contra Ramagem que ocorreram após a diplomação. Zanin se manifestou após a Corte ter sido acionada pelo líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ).
Moraes foi acompanhado por Zanin, Dino e Fux. Para o presidente da 1ª Turma, suspender a íntegra da ação produziria “efeitos indesejáveis”, por serem vetados pela legislação. “A imunidade formal ora em evidência apenas se aplica aos parlamentares no exercício do mandato, revestindo-se de uma natureza personalíssima que a torna inidônea de aproveitamento pelos corréus”, disse.
Dino, que já tem vivenciado embates com os parlamentares em uma ação que discute as emendas e gerou a exigência de novas regras de transparência, foi além. Segundo ele, a decisão tomada pela Câmara por 315 votos a favor e 143 contrários “ultrapassa em muito a previsão constitucional”.
O ministro considerou que o ocorrido foi uma “indevida ingerência” no Judiciário e acrescentou que “somente em tiranias um ramo estatal pode concentrar em suas mãos o poder de aprovar leis, elaborar o Orçamento e executá-lo diretamente, efetuar julgamentos de índole criminal ou paralisá-los arbitrariamente”. Fux, por sua vez, disse que a suspensão da ação “só pode alcançar, pela literalidade do texto constitucional, os crimes supostamente ocorridos após a diplomação”.
Os posicionamentos são acompanhados pelo entendimento de juristas.
— Essa resolução da Câmara é acintosamente inconstitucional. A única coisa que a Câmara pode fazer é sustar a ação penal no que se refere a Alexandre Ramagem, não em relação aos outros réus — avalia o professor de Direito Constitucional da UFF Gustavo Sampaio.
Professor da FGV Direito Rio, Álvaro Palma de Jorge acrescentou que a Constituição confere esse direito ao Congresso no contexto da preservação das imunidades parlamentares, ou seja, restrita aos detentores de mandato.
Já a oposição bolsonarista discorda. Logo após a formação da maioria no julgamento, parlamentares começaram a ensaiar uma reação e a cobrar Motta, que não se manifestou.
“Um ministro está se sobrepondo à vontade de toda a Câmara. Com a palavra, o presidente Hugo Motta. Vai defender a soberania do Parlamento ou assistir calado?”, questionou nas redes sociais o líder do PL na Casa, Sóstenes Cavalcante (RJ).
Já o líder da oposição na Câmara, Luciano Zucco (PL-RS), acrescentou que o Congresso não “aceitará ser reduzido a um espectador passivo de suas próprias atribuições” e que a História “não absolverá o silêncio cúmplice nem a covardia diante de tamanha afronta”. Governistas, por sua vez, celebraram a formação de maioria na Corte. “STF rejeita manobra de impunidade votada na Câmara”, escreveu a deputada Maria do Rosário.
O caso Ramagem é mais um episódio que opõe parte do Congresso ao STF. O movimento é estimulado pelos bolsonaristas e, neste caso, contou com o aval de Motta, como um aceno à oposição. Aliados interpretaram a iniciativa como uma forma de compensar parte do grupo que apoiou sua ascensão ao comando da Casa, já que ele semanas atrás esvaziou a iniciativa que buscava uma anistia geral aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro.