“Narcocultura” é a palavra-chave para entender o que está em jogo com a prisão do MC Poze do Rodo, na semana passada, no Rio de Janeiro.
Presente em músicas, filmes e séries, essa forma de manifestação supostamente artística retrata os traficantes como figuras poderosas e carismáticas, cuja atuação benevolente em comunidades pobres é uma necessidade social em um espaço abandonado pelo governo.
Mais do que entretenimento, a “narcocultura” é uma ferramenta estratégica de dominação simbólica — utilizada pelo tráfico de drogas em diversos lugares do mundo para enfraquecer o Estado, glorificar as facções e promover a naturalização da vida bandida entre os jovens.
Acusado de apologia ao crime e envolvimento com o Comando Vermelho (CV), Poze teve a prisão revogada na noite de segunda-feira (2). Mas o episódio colocou ainda mais lenha num debate que já estava quente no Brasil: o dos limites entre a liberdade de expressão na arte e a promoção de atividades ilícitas.
De um lado, a polícia aponta para uma crescente intersecção entre a cultura pop e o crime organizado. Do outro, setores progressistas da academia, do mundo jurídico e da política (com destaque para parlamentares do PSOL) interpretam a repressão a rappers e funkeiros acusados de ligação com o tráfico como “criminalização da arte periférica” e “racismo e preconceito institucional”.
O caso de Poze, contudo, vai além das denúncias de que o cantor serve de propaganda para o Comando Vermelho. Segundo as investigações, seus shows em áreas controladas por traficantes eram utilizados pela facção como pontos de venda de entorpecentes e de incentivo para jogos ilegais.
Para se ter uma ideia, o CV movimentou cerca de R$ 600 mil apenas durante um baile funk na Cidade de Deus, onde ele se apresentou dias antes de ser preso.
Isso sem contar a suspeita de lavagem de dinheiro a partir de cachês. O MC cobra, em média, R$ 40 mil por evento, porém já chegou a receber R$ 200 mil em uma única apresentação — como ele revelou ao programa “Profissão Repórter”, da Rede Globo, em 2023. Agora a polícia quer saber se parte desse dinheiro vai para o tráfico.
Rifas ilegais, tortura, cárcere privado
Nessa mesma edição do programa, Poze, de 26 anos, também reforçou sua “lenda pessoal”, calcada numa história de superação da vida bandida.
Segundo Marlon Brandon Coelho Couto Silva (seu nome de batismo), ele foi “vapor” (pequeno vendedor de drogas) na Favela do Rodo, no bairro carioca de Santa Cruz, entre 2015 e 2016. Mas largou a atividade para se dedicar à música quando a milícia invadiu a comunidade e tomou conta dos negócios ilegais realizados ali — antes disso, Marlon chegou a ser baleado e preso.
Nascia então o MC Poze do Rodo (“Poze” é “pose” escrito errado mesmo), que hoje conta com mais de seis milhões de ouvintes mensais no Spotify e cujo maior hit na plataforma é a faixa “Me Sinto Abençoado”, reproduzida mais de 172 milhões de vezes desde seu lançamento, em 2021.
“Hoje o mundo girou, louvado seja o senhor / Que minha vida mudou, me abraçou e me abençoou”, diz a letra, que ainda menciona grifes de roupa e outros itens de consumo, como é de praxe no chamado “rap ostentação”.
O artista, por sinal, é conhecido por exibir sua coleção de joias, caracterizada principalmente por cordões dourados — que beiram o bizarro de tão pesados. “Sou fanático por ouro”, disse à imprensa quando se apresentou no Rock in Rio de 2024 (meses antes, ele foi uma das atrações do “Cruzeiro do Neymar”, de quem é amigo).
Naquele ano, o cantor e a mulher dele, a influenciadora digital Vivi Noronha, foram investigados pela Operação Rifa Limpa, promovida pela Polícia Civil do Rio de Janeiro contra sorteios ilegais organizados nas redes sociais.
Na ocasião, suas joias e a frota particular de carros de luxo do casal foram apreendidos para avaliação. De acordo com o Instituto de Criminalística, somente um dos cordões analisados pelos peritos valia R$ 650 mil.
Graças a esse “fanatismo” por ouro, Poze também foi denunciado por tortura e cárcere privado. O episódio aconteceu em 2023, quando ele suspeitou que seu ex-empresário, Renato Macedo, havia roubado um de seus braceletes.
Macedo alegou ter sido espancado e queimado com cigarro pelo cantor e por amigos dele, que o mantiveram preso na mansão do MC. A polícia chegou a pedir a prisão de Poze por esses crimes, mas a solicitação foi negada pela Justiça.
Outro escândalo criminal envolvendo Marlon “Poze” Brandon ocorreu em 2019, na cidade de Sorriso, em Mato Grosso (MT). Já relativamente famoso na época, ele foi detido, após se apresentar numa festa de funk, por tráfico de drogas, incitação e apologia ao crime e corrupção de menores (pois forneceu bebida alcoólica para adolescentes do público).
Nesta terça-feira (3), foi a vez de Vivi virar alvo de uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro. A mulher do cantor (e mãe de três de seus cinco filhos) é suspeita de envolvimento em um esquema de lavagem de dinheiro operado pelo traficante Fhillip da Silva Gregório, o “Professor”, morto no último domingo (1º).
Arma invisível
Mas a temática de Poze do Rodo não se resume à gratidão pelos bens adquiridos após trocar o tráfico pelo rap e o funk. Segundo a polícia, ele é um dos maiores expoentes do subgênero “proibidão”, usado como uma espécie de arma invisível pelas facções criminosas — para se divulgar, mandar recados, provocar inimigos e desprezar a autoridade policial.
“Esse suposto MC transformou a música num instrumento de dominação, divulgação e disseminação da ideologia e da narcocultura do Comando Vermelho”, disse o secretário estadual de Polícia Civil do Rio, delegado Felipe Curi. De acordo com ele, as letras do cantor “enaltecem o uso de armas de grosso calibre e o uso de drogas, além de fomentar guerras e disputas territoriais com facções criminosas rivais”.
Curi não está exagerando. Em “Na CDD Só Tem Faixa Preta”, Poze canta: “Nós tem Glock [pistola], tem AK, 62 [modelos de fuzil] com mira laser / Terror dos alemão [inimigos], é os moleque da 13 [localidade da Cidade de Deus] / Nós vamo voltar pra casa e botar a bala pra comer / Retomar o que é nosso e gritar: É o CV!”.
Já na faixa “Tropa do General”, ele ridiculariza as facções Terceiro Comando Puro (TCP) e Amigos dos Amigos (ADA), rivais tradicionais do Comando Vermelho. “Os TCP*ta tá peidando pro bloco dos cria / Nós odeia ADA e TCP / Desde menor sou Comando, nós é relíquia / Trem bala dos manos / Com os fuzil tudo na pista, ah, ah, ah / Tropa do General com vários ParaFAL [fuzil], diz a letra.
Em “Fala que a Tropa é Comando Vermelho”, Poze também exalta a superioridade do CV sobre os inimigos. “É bala nos três c* [gíria para rival], é bala nos três c* / De 62 é só papum e os alemão aqui nem tenta / De Glock e de radin, fumando um baseadin / Destrava o G3zão [fuzil] que se piar, nós quebra”.
Segundo as autoridades, a grande maioria dos shows do MC acontece em áreas dominadas pelo Comando Vermelho. Registros em vídeo dessas festas — que viram noites e tiram o sono dos moradores das comunidades — mostram a presença ostensiva de traficantes armados até os dentes, e muitos deles chegam a dançar apontando fuzis para o alto.
Aliás, para o delegado Felipe Curi, essas imagens também servem para cooptar e aliciar menores ao crime. “Elas muitas vezes são muito mais lesivas do que um tiro de fuzil disparado por um traficante”, afirma, completando que o rapper é mais uma das várias engrenagens do Comando Vermelho.
Segundo a polícia, portanto, Poze do Rodo nunca deixou a vida bandida: apenas a transformou em produto cultural e propaganda da facção.
“Fazedor de cultura”
O artigo 287 do Código Penal tipifica como crime “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime” (com pena de multa ou detenção de três a seis meses).
A defesa de Poze, no entanto, alega que suas músicas são “manifestações artísticas” baseadas em relatos de situações que, fora da ficção, seriam crimes — mas não geram processos contra autores de outra obras ficcionais com a mesma temática, como filmes, livros e novelas.
Há ainda quem defenda o cantor utilizando o argumento da discriminação racial e social. Como o Instituto dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), que chegou a pedir ao Supremo Tribunal Federal a soltura do cantor
“Estamos diante de mais um exemplo de violência racial sistêmica. Não se trata apenas de um abuso de poder, mas de um ataque à dignidade de um homem negro que reflete práticas enraizadas em nossa sociedade. O STF precisa reconhecer que a prisão foi marcada por discriminação e tortura e, por isso, deve ser declarada ilegal”, disse o coordenador jurídico da entidade, Hédio Silva JR.
No segmento da política, destacaram-se as manifestações públicas de parlamentares do PSOL. Líder do partido na Câmara, a deputado federal Talíria Petrone (RJ) afirmou que a prisão de MC Poze é “mais um capítulo da criminalização da cultura de favela”.
Talíria ainda questionou a prioridade das investigações policiais, sugerindo que as autoridades deveriam se concentrar em quem financia o crime e a milícia, em vez de “perseguir fazedores de cultura”.
Já Erika Hilton, deputada federal pelo PSOL de São Paulo, denunciou a suposta seletividade da Justiça — e até deu um jeito de incluir Jair Bolsonaro na discussão.
“Quando PMs são presos por estuprar uma jovem dentro da viatura, a Justiça Militar absolve. Quando um juiz comete violência doméstica, é ‘punido’ com a aposentadoria. Quando um ex-presidente tenta um golpe de estado, tem deputado que quer até prender quem ousa investigá-lo”, disse.
Ainda segundo Erika, Poze “não tem nada a ver com os crimes pelos quais ele é acusado”. “É só mais uma forma de um sistema extremamente corrupto e criminoso colocar a culpa em alguém”, afirmou.
No campo mais à direita, o deputado federal Kim Kataguri (União-SP) e a vereadora Amanda Vettorazzo (União-SP) prontamente se manifestaram. Ligados ao Movimento Brasil Livre (MBL), eles são os principais nomes por trás da “Lei-Anti Oruam”, que busca proibir o poder público de utilizar recursos para contratar, apoiar ou divulgar shows cujo conteúdo faça apologia ao crime ou ao uso de drogas.
O nome do dispositivo faz referência ao rapper Oruam, outra figura de ponta do “proibidão”. Filho do traficante Marcinho VP (um dos líderes do Comando Vermelho), ele também é acusado de glorificar o CV em suas músicas, além de pedir a liberdade do pai em shows.
“Poze do Rodo acordou de um jeito bem especial hoje: enquadrado pela polícia! Ótima quinta-feira para todos, menos pro Poze que deve estar prestando depoimento agora”, disse Kataguiri no X.
Amanda, por sua vez, aproveitou a deixa para mandar um recado para Oruam: “O próximo é você”.

Tumulto na saída
Não à toa, o filho de Marcinho VP foi o defensor mais enfático de Poze nos últimos dias. Primeiro, ele gravou vários vídeos solidários ao MC, argumentando que o Estado está perdendo a luta contra o crime e, para dar uma resposta à sociedade, “criminaliza um preto, pobre e favelado”. “Isso é a maior covardia. Eles gostam de envergonhar nós (sic)”, disse.
Não satisfeito, Oruam anunciou em suas redes que organizaria “o maior rolê de moto da história do Rio” para pedir a liberdade de Poze do Rodo. A motociata, realizada na madrugada de sexta-feira (30), reuniu centenas de veículos na Zona Norte da cidade e causou transtorno aos moradores da região, que chamaram a polícia para conter a confusão.
Nesta terça-feira (3), o rapper causou tumulto antes da libertação do amigo. Ele subiu em um ônibus e agitou a multidão de cerca de 300 fãs de Poze que o esperavam na saída do Complexo de Gericinó, na Zona Oeste do Rio. A polícia teve de usar balas de borracha, porretes e gás lacrimogêneo para conter as pessoas que também tentaram subir em coletivos.
Poze e Oruam são vinculados à gravadora Mainstreet Records, cujo elenco inclui outros artistas acusados de apologia ao crime (como Cabelinho e Orochi). O próprio selo de gravação é alvo de investigações por, supostamente, produzir músicas que enaltecem facções e participar de esquemas de lavagem de dinheiro. Segundo a polícia, esse tipo de empresa de entretenimento pode funcionar como braço financeiro do tráfico.
“Hoje eles prenderam o Poze. Amanhã eles vão prender o Oruam”, disse o filho de Marcinho VP em um de seus vídeos recentes — com a visível expressão de preocupação de quem, como alertou a vereadora Amanda, pode “ser o próximo”.
A reportagem da Gazeta do Povo entrou em contato com a coordenação de comunicação da deputada Talíria Petrone e chegou a enviar perguntas para a parlamentar, mas não recebeu as respostas até a conclusão deste texto. A assessoria de imprensa da deputada Erika Hilton também foi procurada, porém não deu retorno.