O manto sobre um intrincado esquema de espionagem ilegal no coração do poder brasileiro começa a ser levantado. A Polícia Federal (PF) acaba de anunciar que concluiu seu inquérito sobre a chamada “Abin Paralela” e indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro e seu então diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, atual deputado federal pelo Partido Liberal (PL). A acusação é grave: usar a estrutura de inteligência do Estado para monitorar ilegalmente adversários políticos, atendendo a interesses pessoais e disseminar informações falsas sobre o sistema eleitoral. O atual diretor da Abin, Luiz Fernando Corrêa, indicado por Lula, também foi indiciado.
A entrega do relatório final da PF ao Supremo Tribunal Federal (STF), no último dia 12 de junho, encerra mais uma etapa de um processo que já dura dois anos. A história foi revelada em março de 2023, com a notícia do jornal O Globo da compra de um sistema espião pela Abin para monitorar a localização de alvos pré-determinados em todo o país. O tema vem sendo acompanhado pela Agência Pública em série de reportagens desde então.
As investigações da PF, iniciadas então no primeiro ano do governo Lula (2023), já indicavam um suposto aparelhamento da Abin, numa rede clandestina que operava à margem da lei.
No centro da trama está o software israelense “First Mile”, um programa de espionagem capaz de rastrear celulares “reiteradas vezes” ao explorar vulnerabilidades nas redes de telefonia 2G e 3G do Brasil – brechas que, dada a complexidade do sistema, ainda são difíceis de eliminar. O programa foi desenvolvido e vendido pela empresa de Israel, Cognyte.
Por que isso importa?
- O caso da “Abin Paralela” revela um complexo esquema de espionagem ilegal que se desenrolou durante o governo Bolsonaro, utilizando a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para fins políticos e pessoais.
Os alvos da espionagem
A lista de alvos da espionagem clandestina durante o governo Bolsonaro era extensa e preocupante, incluindo ministros do STF como Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli e Luiz Fux, além de políticos como o ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) e jornalistas. Esse monitoramento de figuras-chave da República e da imprensa, segundo a PF, não visava à segurança nacional, mas sim a interesses políticos e pessoais do então presidente Jair Bolsonaro e de seus filhos.
Embora Ramagem e Bolsonaro neguem as acusações, a investigação já apontava para um uso indevido e descontrolado de recursos de inteligência, o que levou a uma dificuldade na obtenção de provas e uma disputa nos bastidores entre Abin e Polícia Federal.
O atual diretor-geral da Abin, Luiz Fernando Corrêa, já vinha pressionado a dar explicações sobre uma operação de espionagem contra autoridades do Paraguai nos últimos meses, e que veio à tona em meio às investigações da Abin Paralela.
“First Mile” e Cognyte, as primeiras revelações
O software israelense “First Mile” foi utilizado em mais de 60 mil buscas contra alvos durante a gestão Bolsonaro. Ainda não se sabe, porém, se os dados destas consultas ficaram mantidos somente no Brasil ou se as informações também ficaram acessíveis nos servidores-base da fabricante do programa, a israelense Cognyte. A vigilância em massa por essa mesma empresa foi detectada em países como Mianmar e Sudão do Sul.
Em agosto de 2020, um áudio clandestino veio à tona, revelando discussões entre Bolsonaro e Ramagem sobre estratégias para proteger o então senador Flávio Bolsonaro de um inquérito fiscal, abordando supostas irregularidades de auditores da Receita Federal. Este episódio marcou um dos primeiros indícios concretos do aparelhamento da agência.
A transição do governo Bolsonaro para Lula, no final de 2022 e início de 2023, foi crucial para o aprofundamento das investigações. A partir de documentos sigilosos, a Pública trouxe à tona em fevereiro de 2023 o monitoramento de cidadãos pela Abin e o possível uso de meios ilegais, assim como o uso de dossiês apócrifos contra líderes caminhoneiros, reforçando as suspeitas de desvio de finalidade.
Os agentes envolvidos e as operações clandestinas
As investigações da PF identificaram policiais federais como peças-chave na “organização criminosa” que operava a Abin Paralela. Delegados como Alexandre Ramagem (ex-diretor da Abin e atual deputado federal) e Carlos Afonso Coelho (homem de confiança de Ramagem e informalmente o primeiro gestor do Centro de Inteligência Nacional – CIN, um dos braços da Abin suspeitos de uso ilegal do FirstMile) foram apontados como líderes do esquema. Outros agentes, como Felipe Arlotta Freitas, Alexandre Ramalho Dias Ferreira, Carlos Magno de Deus Rodrigues, Henrique César Prado Zordan, Luiz Felipe Barros Félix e Marcelo Araújo Bormevet, também tiveram seus nomes ligados à trama.
Esses agentes ocuparam cargos de liderança no CIN, assessoraram diretamente Ramagem ou atuaram em seu gabinete. Alguns deles, como Felipe Arlotta, foram coordenadores de operações ilegais, como a “Operação Trojan”, uma ação clandestina da Abin em favelas do Rio de Janeiro, revelada em 2024, que não foi devidamente motivada, justificada ou registrada. Além disso, o mesmo caso dos dossiês apócrifos contra líderes caminhoneiros também foram associados à atuação desses agentes.
A demora na conclusão e as disputas internas
Apesar da gravidade das acusações, a conclusão do caso Abin Paralela tem se estendido por mais de dois anos, gerando críticas e preocupações. A demora é atribuída a dois fatores principais: a dificuldade na obtenção de provas contra os suspeitos, uma vez que o uso ilegal do FirstMile ocorria “sem ordens formais, prevenindo-se rastro material das atividades ilícitas”, e uma disputa nos bastidores entre as diretorias da Abin e da Polícia Federal, ambas ocupadas por delegados federais.
Outras informações elementares, como a lotação de agentes envolvidos, só foram colhidas pela PF no início de 2025, quase dois anos após a abertura do inquérito. Depoimentos de figuras-chave, como o ex-diretor-adjunto da Abin Frank Márcio de Oliveira, também só foram tomados em 2025. A Corregedoria da Abin, que até julho de 2024 era comandada por Lidiane dos Santos Souza (indicada no governo Bolsonaro), foi alvo de desconfiança por não ter apurado denúncias graves ligadas à Abin Paralela. A troca de comando para José Fernando Chuy em agosto de 2024 resultou na reabertura de investigações sobre desvios de conduta, incluindo a Operação Trojan.

Os indiciados
Sobre o relatório entregue hoje ao STF, a Pública apurou que há mais de trinta pessoas indiciadas, entre elas:

Jair Bolsonaro — O ex-presidente é apontado pelas investigações da Polícia Federal por ter conhecimento do funcionamento da estrutura paralela de espionagem e por se beneficiar diretamente das informações obtidas. Além disso, ele é indiciado por não ter tomado nenhuma medida para interromper a prática de espionagem ilegal, o que sugere uma omissão diante das irregularidades.

Alexandre Ramagem — Ex-diretor da Abin durante o governo Bolsonaro, Ramagem, hoje deputado federal, é indicado como o principal responsável por organizar o esquema ilegal de monitoramento. As apurações o colocam como uma figura central na criação e operação dessa estrutura paralela que desviava a finalidade da agência de inteligência.

Carlos Bolsonaro — Filho do ex-presidente, Carlos foi indiciado por suspeita de chefiar o chamado “gabinete do ódio”. A acusação é que esse grupo teria utilizado as informações obtidas por meio da Abin paralela para produzir e disseminar conteúdos nas redes sociais com o objetivo de atacar adversários políticos do ex-presidente. Isso sugere um elo entre a espionagem e a manipulação da opinião pública.

Luiz Fernando Corrêa — atual diretor-geral da Abin, foi indiciado por suposta tentativa de atrapalhar as investigações. Essa indicação levanta questões sobre a colaboração da agência com a Polícia Federal e a transparência no processo de apuração dos fatos.

Atual cúpula da Abin — o UOL noticiou que José Fernando Chuv, corregedor-geral do órgão, também aparecem no relatório final da PF. Além deles, constam o ex-diretor-adjunto da Abin, Alessandro Moretti, e Paulo Maurício Fortunato, que era secretário de Planejamento do órgão na gestão de Corrêa e foi afastado do cargo pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, em 2023, por suspeita de integrar o esquema de monitoramento ilegal.
O que acontece agora?
O ministro do Supremo Alexandre de Moraes enviará o relatório à Procuradoria Geral da República (PGR). Ainda sem prazo, a PGR pode oferecer ou não denúncia contra os indiciados na trama da “Abin Paralela”. Por enquanto, Jair Bolsonaro e os demais ainda não são réus nesse processo, diferente do que ocorre com o julgamento da tentativa de golpe de Estado, no qual o ex-presidente é réu e pode ser sentenciado.