O ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF), sinalizou uma divergência em relação aos três votos proferidos até agora no julgamento que trata da responsabilização das plataformas digitais e apontou uma prerrogativa do Congresso Nacional para legislar sobre as regras do Marco Civil.
O julgamento foi retomado nesta quarta-feira com o voto de Mendonça, que havia pedido vista do caso em dezembro de 2024. Ao iniciar a leitura de seu posicionamento, o ministro fez uma detalhada análise sobre o fenômeno das redes sociais e das fake news e disse ver a competência do Legislativo para analisar o tema.
— Ao assumir maior protagonismo em questões que deveriam ser objeto de deliberação por parte do Congresso Nacional, o Poder Judiciário acaba contribuindo, ainda que não intencionalmente, para agudização da sensação de desconfiança hoje verificada em parcela significativa da nossa sociedade— disse.
Ao longo da primeira parte de seu voto, Mendonça apresentou argumentos teóricos sobre a liberdade de expressão, e defendeu uma abordagem que coloca o conceito como prioritário.
— Por tudo quanto se apontou especificamente em relação ao fenômeno das fake news, diante da sua íntima conexão com os processos de crise institucional e democrática atualmente vivenciados deles se torna ainda mais imperiosa a adoção de uma postura autocontida — afirmou.
— É preciso considerar que num cenário no qual um dos principais fatores das crises atuais centra-se na desconfiança do cidadão em torno da credibilidade das instituições, não me parece que seja adotando medidas que, em última análise, irão impedi-lo de manifestar seu descontentamento com o estado de coisas vivenciado – inclusive por meio da defesa de outros regimes de governo, em substituição a forma democrática – sob a eventual justificativa de que seria preciso combater – pelo Direito e, portanto, através do Poder Judiciário – a mentira, que se irá superar a realidade de beligerância latente.
No início do julgamento, Barroso afirmou que a análise não configura “censura” nem “invasão” à competência de outros Poderes. Após a leitura dessa primeira parte de seu voto, Mendonça afirmou que tinha chegado à metade e a sessão foi suspensa. O ministro retomará a análise nesta quinta-feira.
O que está em discussão no julgamento do STF é o modelo de responsabilização das plataformas pelo conteúdo de terceiros — se e em quais circunstâncias as empresas podem sofrer sanções por conteúdos ilegais postados por seus usuários. A regra que está em vigor atualmente diz que as redes só podem ser responsabilizadas se descumprirem uma ordem judicial de exclusão de conteúdo.
O recomeço do julgamento sobre as plataformas ocorre no momento em que os Estados Unidos, por meio do governo de Donald Trump, ameaçam sancionar Alexandre de Moraes por decisões dadas contra grandes empresas de tecnologia. Na semana passada, a possibilidade de punição ao ministro foi comentada pelo chefe do Departamento de Estado norte-americano, Marco Rubio, durante um depoimento na Comissão de Relações Exteriores do Congresso.
No STF, ministros avaliam que era importante que o julgamento das plataformas fosse retomado para pontuar que a Corte não deixará de analisar o tema e tomar uma decisão mesmo diante do cenário de ameaças. Como mostrou O GLOBO, magistrados também veem como possível a pressão do bilionário Elon Musk nas sanções contra Moraes aventadas pelo governo norte-americano.
O Supremo julga a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, norma que estabeleceu os direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. De acordo com o dispositivo, “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”, as plataformas só podem ser responsabilizadas pelas postagens de seus usuários se, após ordem judicial, não tomarem providências para retirar o conteúdo.
No atual quadro, os dois votos proferidos pelos relatores, Fux e Dias Toffoli, estão declarando a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil e defenderam que, em casos de conteúdos ofensivos ou ilícitos, as plataformas digitais devem agir a partir de uma notificação extrajudicial, sem necessidade de ordem judicial.
Toffoli defendeu que, nos casos de conteúdos ofensivos ou ilícitos, como racismo, as plataformas digitais devem agir a partir do momento que forem notificadas de forma extrajudicial. Ou seja, pela vítima ou seu advogado, sem necessidade de aguardar uma decisão judicial.
— Parece-me evidente que o regime de responsabilidade dos provedores de aplicação por conteúdo de terceiros, previsto no artigo 19 do MCI (Marco Civil da Internet), é inconstitucional. Seja porque, desde sua edição, mostra-se incapaz de oferecer proteção efetiva aos direitos fundamentais (…), seja porque não é apto a fazer frente aos riscos sistêmicos que surgiram nesses ambientes a partir do desenvolvimento de novos modelos de negócios — afirmou.
Relator da outra ação, Fux também considerou que o artigo 19 do Marco Civil é inconstitucional. Durante seu voto, Fux afirmou que existe um “déficit de proteção” dos direitos no ambiente digital e disse que hoje as plataformas não têm “estímulo” para remover conteúdos ilícitos e criminosos, observando que se cria uma “terra sem lei”.
— Olha que zona de conforto, a plataforma chega e diz eu não tenho condições, não tem como tirar, isso é para garantir a liberdade dos negócios. E como garante a liberdade dos negócios? Degrada a liberdade das pessoas — observou Fux.
‘Incentivo a ficarem inertes’
Autor de um voto considerado intermediário, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, defendeu que as plataformas digitais devem ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros caso deixem de tomar as providências necessárias para remover postagens com teor criminoso. Para ele, o artigo 19 não dá proteção suficiente a direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, e a valores importantes para a democracia.
— Não há fundamento constitucional para um regime que incentiva que as plataformas permaneçam inertes após tomarem conhecimento de claras violações da lei penal — disse.
Quando votou, Barroso fez um apelo ao Congresso Nacional para que estudasse a criação de um regime jurídico para esse tema que regule as medidas necessárias para avaliar e minimizar riscos, defina as sanções e crie órgão regulador responsável pela análise de conformidade das plataformas.
O STF aguardou que o Congresso avançasse com o assunto, mas o PL das Redes Sociais teve a tramitação atravancada por pressão da bancada bolsonarista — e acabou freado pelo então presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que chegou a criar um grupo de trabalho para tratar do tema, mas que também não avançou.
Além de Mendonça, que vota nesta quarta-feira, sete ministros ainda precisam votar. É possível que o julgamento seja novamente paralisado por um pedido de vista.