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Sebastião Salgado: a lente que chorava o mundo

Hoje, despedi-me em silêncio de um dos homens que mais ensinaram a ver. Sebastião Salgado morreu aos 81 anos, e comigo — como com milhares — permanece viva a comoção de quem aprendeu com ele a olhar o mundo não apenas com os olhos, mas com a alma.

Conheci Salgado primeiro por suas imagens. Muito antes de ouvir sua voz grave, ou de vê-lo receber prêmios e honrarias ao redor do mundo, fui atingido — como por uma onda súbita — por suas fotografias em preto e branco. Não era só a ausência de cor que me impressionava, era a presença de uma humanidade imensa. Ele fotografava migrantes, trabalhadores, povos indígenas, florestas ameaçadas, o planeta ferido. Mas o que seus retratos realmente capturavam era a dignidade. E era impossível não se comover.

Salgado começou sua carreira como economista. Formado, atuou em instituições respeitadas, como a Organização Internacional do Café. Mas algo dentro dele pulsava diferente. Ao tomar pela primeira vez uma câmera fotográfica em mãos — emprestada de Lélia, sua companheira de vida — entendeu, talvez de forma súbita e inevitável, que seu destino estava ali: não em planilhas, mas em pessoas.

Desviou-se, então, da rota previsível e mergulhou na incerteza da arte. Mas sua arte nunca foi contemplativa. Era denúncia, era escuta, era presença. Era — como diria El País em sua belíssima homenagem — um compromisso visual com os grandes desafios contemporâneos.

Vi, em sua obra Trabalhadores, a exaustão épica dos corpos que sustentam o mundo invisível. Em Êxodos, acompanhei multidões em fuga, e me senti responsável por cada lágrima retratada. Em Gênesis, vi um Salgado mais místico, quase profético, percorrendo os últimos redutos intocados da Terra como se registrasse não apenas paisagens, mas orações. E em seu derradeiro testamento visual, Amazônia, ele se fez mais do que fotógrafo: tornou-se guardião. Passou oito anos realizando expedições pela floresta, convivendo com povos originários, mapeando uma beleza ameaçada. Cada imagem era um grito silencioso contra o colapso ambiental.

Não se pode falar de Salgado sem falar de Lélia. Juntos, fundaram o Instituto Terra, e transformaram uma fazenda degradada no Vale do Rio Doce em floresta viva. Foram milhares de hectares reflorestados, milhões de árvores plantadas, centenas de nascentes reavivadas. Quando ele cansava da humanidade, voltava-se para a natureza — e lá reencontrava esperança.

Salgado foi reconhecido em todos os continentes. Venceu o Prêmio Príncipe de Astúrias, foi membro da Academia de Belas Artes da França, teve suas obras exibidas no MoMA de Nova York, na Maison Européenne de la Photographie, no Tate e no Louvre. Mas creio que o verdadeiro reconhecimento nunca esteve nas salas de museus. Estava nos olhos marejados de quem via suas fotos e se via nelas. Estava na lágrima que escorria por um rosto retratado e terminava no nosso.

Estávamos em novembro de 1998 e, por essa época, eu era editor da Letra Viva Editores. Tinha diante de mim o maior projeto editorial da minha vida: publicar Quem Está Escrevendo o Futuro? — um livro que nascia inspirado em um documento profundo e visionário da Casa Universal de Justiça, refletindo sobre o século XXI. A proposta era reunir 25 dos mais notáveis pensadores, filósofos e artistas contemporâneos para refletirem sobre os 100 anos que se encerravam e imaginarem os próximos cem. Sonhávamos alto: textos de autores como Adolfo Pérez Esquivel, José Ramos-Horta, Frei Betto, Moacyr Scliar, Luiz Gushiken, Leonardo Boff, Afonso Romano de Sant’Anna. Mas faltava algo essencial: o olhar de Sebastião Salgado.

Fiz dezenas de contatos. Era 1999, tempo de fax e telefonemas interurbanos. Liguei para vários países, falei com cada autor mais de uma vez. Com Salgado, falei pelo menos meia dúzia. Ele estava em Paris. A cada ligação, mostrava uma generosidade quase comovente. Quando, depois de uma hora explicando o projeto, ouvi suas primeiras palavras, jamais esqueci: “Washington amigo, estou dentro desse projeto. E já quero dizer que vou selecionar 21 fotografias pra ele.” Aquilo me desmontou. É que esperava uma ou duas fotos. Começamos então uma bela parceria: trocávamos ideias sobre as legendas, a sequência das fotos, o sentido maior que o livro deveria ter. Ele queria saber quem mais havia participado, desejava ler alguns textos, mandava abraços para autores que admirava. Ele era assim, despojado e abarrotado de talento e sensibilidade.

Essa experiência me ensinou algo que nunca mais esqueci: o olhar de Salgado não vinha da técnica, vinha do coração. Ele fotografava com o sentimento de quem se indigna e com a delicadeza de quem ama. Aquela doação generosa ao livro não foi apenas uma colaboração profissional. Foi um gesto de confiança, um reconhecimento silencioso de que os sonhos, quando verdadeiros, encontram eco. Quem Está Escrevendo o Futuro? ganhou corpo, ganhou alma. E em cada página, as imagens dele — dos lavradores, dos indígenas, dos sem-terra — pareciam sussurrar: “o futuro se escreve agora, com justiça e com compaixão.”

Hoje, ao saber de sua partida, senti um vazio que não explica. Como se o mundo, de repente, tivesse perdido um pouco de sua luz — ou, melhor, de sua sombra, pois era na penumbra que Salgado encontrava sentido. Suas fotografias, com aqueles céus grandiloqüentes, quase bíblicos, pareciam painéis renascentistas. Em Serra Pelada, por exemplo, ele capturou a massa humana como um formigueiro incansável, mas também deu rosto, nome e alma a cada trabalhador coberto de lama. Aqueles homens, perdidos na narrativa diária, ganhavam vida em suas lentes. E eu, ao ver essas imagens, sentia-me pequeno, mas também chamado a ser mais humano.

Salgado dizia que a fotografia era seu idioma. E como ele falava! Suas imagens em preto e branco, dotadas de uma profundidade assustadora e bela, eram mais que retratos: eram textos, poemas, manifestos. Em Terra, projeto monumental sobre as ocupações do MST, ele uniu sua visão a um prefácio de José Saramago e a canções de Chico Buarque, como Assentamento, interpretada com força monumental por Renato Brás. O livro, lançado em 1997, não era apenas um registro; era um grito por justiça, um canto pela terra. Lembro-me de ouvir falar das palestras de Salgado, Saramago e Chico, três gigantes da cultura lusófona, viajando o mundo para falar daquele projeto. Como não se emocionar com tamanha potência?

Havia algo de mágico na forma como Salgado estruturava suas imagens. Ele trabalhava com filmes sensíveis, capturando todos os planos em foco, do primeiro ao último. Nada escapava à sua lente: nem o suor no rosto de um mineiro, nem o horizonte carregado de nuvens. Em Outras Américas (1986), ele revelou os povos originários do continente, suas lutas e sua beleza. Em Êxodos, abordou as migrações com uma sensibilidade que hoje, em tempos de recrudescimento contra imigrantes, soa profética. Suas fotos humanizavam os invisíveis, davam biografia aos sem-nome, e isso me toca profundamente. Como não chorar diante de um olhar que, em um clique, revela a alma?

Sua trajetória é um exemplo raro. Salgado transformou viagens em grandes projetos, que viraram livros e exposições globais. Começou como fotojornalista, capturando momentos históricos como o atentado a Reagan nos anos 80, mas logo deu um salto. Com a venda dessas fotos, financiou suas primeiras grandes expedições. Serra Pelada foi o marco inicial, um “estouro” que o colocou no mapa. Depois vieram Outras Américas, Terra, Gênesis e Amazônia. Cada projeto era uma janela para o mundo, um convite a ver o que não queríamos enxergar. E eu, que sempre admirei sua capacidade de empreender, sinto orgulho de um brasileiro que, com uma câmera, desafiou o esquecimento.

Hoje, a imprensa internacional — jornais franceses, italianos, do mundo todo — reverencia Salgado com respeito absoluto. E no Brasil, onde tantas vezes perdemos a memória, suas fotos seguem como um documento histórico vivo. Lembro-me de sua história de menino, apostando corrida com o trem em um cavalinho, na época das Marias-Fumaças. Ele contava isso com um brilho nos olhos, como se ainda sentisse o vento no rosto. Talvez ali, na infância, já estivesse o germe de sua inquietude, de sua vontade de correr contra o tempo para capturar o efêmero.

Para mim, Salgado foi uma ponte entre o que somos e o que ainda podemos ser. Um tradutor visual da dor e da esperança. Um poeta da luz que, em vez de escrever com palavras, escrevia com sombra. Neste dia em preto e branco, um grande jornal brasileiro escreveu que ele transformou a fotografia brasileira. Um elogio manco. Cada artista em sua atividade criadora transforma seu ofício. Por isso vou além: Tião ressignificou o papel do artista no mundo. Provou que uma câmera não é só um instrumento, mas um espelho. E que a beleza pode, sim, ser ferramenta de transformação.

Hoje, enquanto escrevo estas palavras, penso na floresta. Penso nas tribos que ele fotografou, nos mineiros cobertos de lama, nos refugiados atravessando desertos, nos pássaros em voo. Penso em Sebastião, que enxergava o invisível. E penso no silêncio que sua morte deixa. Mas também sei: sua lente não se quebrou. Apenas repousou. Porque seu legado continuará nos olhos de todos aqueles que, como eu, jamais voltarão a olhar o mundo da mesma forma.

Descanse em luz, Sebastião. Obrigado por nos ensinar a ver.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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