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O Brasil que pulsa fora do mapa | Colunas

José Saramago escreveu, com aquela delicadeza cortante que só os grandes escritores têm: “É preciso sair da ilha para ver a ilha”. Às vezes, é preciso mesmo sair de onde estamos — do nosso cotidiano confortável, do nosso ponto de vista já treinado — para enxergar o que sempre esteve ali. A viagem então deixa de ser só deslocamento: vira travessia, transformação.

Foi exatamente isso que vivi ao lado da equipe do Pacto Contra a Fome em uma jornada até o Pará. A intenção era conhecer de perto a força da agricultura cooperativa da região, mas voltei com muito mais do que dados e imagens na memória — voltei com o coração atravessado por histórias que não saem mais da alma.

Belém, que se prepara para ser a casa da COP 30, é uma cidade de contrastes tão vivos que parecem gritar. Ao mesmo tempo em que se prepara para sediar discussões globais sobre sustentabilidade, abriga comunidades como a Vila da Barca — uma realidade que expõe o abismo entre discurso e prática. Palafitas instáveis convivem com casas de alvenaria inacabadas, fruto de um projeto que começou com promessas e parou na metade do caminho. Ali, entre becos de lama, lixo, esgoto, ratos e o mínimo de dignidade resistente, a vida segue: improvisada, mas valente.

O Pará, como um todo, carrega esse paradoxo. É um dos estados que mais sofre com a fome no Brasil, apesar de ser um território riquíssimo em alimentos e cultura. Sua gastronomia é uma das mais autênticas e simbólicas do país, com raízes afro-indígenas que revelam a alma brasileira. A diversidade é generosa, durante minha visita provei os mais variados sabores: tacacá, jambu, o açaí original, carne e queijo de búfala, frutos como o pupunha — sabores que encantam e alimentam a identidade de um povo. Mas essa abundância convive com a dura realidade da insegurança alimentar, escancarando desigualdades que não podem mais ser ignoradas.

E é nesse mesmo cenário que florescem iniciativas como o Curro Velho. Um nome que carrega sua própria história: antigo matadouro transformado em centro de cultura e educação. Lá, crianças fazem teatro, aprendem marcenaria, desenham futuros possíveis. Recebem alimento e afeto — porque já houve quem desmaiasse de fome durante uma oficina. A arte, aqui, não é luxo: é sobrevivência.

Seguimos então para a Ilha de Marajó, onde conhecemos a CAFAS, uma cooperativa que começou com poucos jovens e um terreno emprestado. Hoje, é agroindústria respeitável, gera renda, abastece escolas com frutas da própria terra. É o exemplo perfeito de como organização, capacitação e apoio podem virar colheita — no mais amplo dos sentidos.

Em Salvaterra, visitamos o Quilombo de Boa Vista, onde conhecemos uma jovem chamada Gabrielem Lohanny. Dezesseis anos, sonhos do tamanho do mundo. Quer ser médica na própria comunidade — porque, como ela mesma diz, “não vemos pessoas da nossa comunidade trabalhando aqui”. Ela começou a lutar

cedo: reivindicou por melhorias na escola, conseguiu mudanças, virou voz ativa. Chegou até o Senado, chegou até Malala. E segue.

Mas mesmo com toda essa potência, faltam coisas básicas: um médico no posto de saúde, um trator que funcione no tempo certo, combustível para arar a terra. Faltam políticas públicas às especificidades de cada comunidade. As necessidades são reais, urgentes e específicas. E a ausência custa caro: o não-plantio de hoje é o prato vazio de amanhã.

Essa viagem me tirou da ilha — não só da geografia previsível, mas de uma certa zona de conforto onde é fácil se esquecer do Brasil profundo. Um Brasil que não é invisível por acaso, mas que segue resistindo à margem dos grandes centros e dos grandes holofotes.

Voltei diferente. E com o desejo de que mais pessoas saiam de suas ilhas, do seu mapa costumeiro, e enxerguem o que pulsa nas margens. Porque ali, mesmo entre tantas ausências, há um Brasil vibrante, cheio de potência, cheio de gente que não desiste.

E mais do que ver, é preciso agir. Porque esse é o país que temos — e ninguém, absolutamente ninguém, pode ser deixado para trás.

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